HOMENAGEM – PADRE ABEL MATIAS, O.S.B.
Começo por saudar, com entusiasmo fraterno, todos quantos aqui nos reunimos, na certeza de que, juntos, pese embora a nossa diversidade, incorporamos o mesmo sortilégio do espírito beneditino.
É ele que nos congrega, é a força viva que emana deste nosso Colégio que põe em cada um de nós um sorriso que se alarga na frescura de uma juventude reinventada e dá um especial colorido aos cabelos brancos (poucos!) e às rugas (no início!) que vão aparecendo.
Quando me convidaram para emprestar a singeleza da minha palavra para falar de alguém que me parece que conheço desde sempre, de tal forma que, dificilmente, consigo ver-me sem essa figura que invadiu a minha história pessoal de vida, confesso que estremeci.
Pela mente passou-me toda uma sucessão de momentos, de gestos, de imagens, de sons, de cumplicidades que, apelativamente, confluíram, vindos de algumas décadas atrás, para se precipitarem num presente que bebeu muito do que é nesse passado vivido com entusiasmo.
É nestes momentos em que alguém nos pede algo por que não esperávamos, muito para além da nossa valia, que compreendemos a pequenez que nos confina, em confronto com a grandeza da figura de quem devemos falar.
Confesso que a minha primeira reacção foi, para meu espanto e perplexidade, contraditória: por um lado, a imediata e impulsiva vontade de aceitar a tarefa, desde logo, me passando pela mente tantos e tantos episódios que relatar, tantas e tantas ideias que expor acerca da figura de um homem marcante, tantas e tantas confidências a fazer; por outro lado, um não menos imediato receio de aceitar um compromisso para o qual tinha dúvidas de estar preparado, quanto mais não fosse porque dificilmente juraria isenção e afastamento ou ausência de emoção.
Acabei por aceitar pela razão mais simples de imaginar: vale a pena usar da palavra para trazer a todos nós que o conhecemos, para nossa comum elevação, o espírito de um homem que não nos deixou indiferentes, antes, se esgueirou, subtil mas marcantemente, pelas fibras mesmas da nossa vida.
Vale a pena, Padre Abel Matias, correr o risco de falar de si e para si, nem que seja para deixar sair um fio de voz, pedida de empréstimo àquele aspirante que, ao apresentá-lo no dia de aquartelamento para incorporação na primeira missão em África, depois de ter pressentido a sua fibra, disse tão simplesmente e tão eloquentemente: “MEU COMANDANTE, TEMOS HOMEM!”.
Temos homem, Padre Abel Matias… Tivemos homem, padre Abel, desde a generosa impulsividade de um “menino” de vinte e tal anos que quis, por opção própria, enfrentar o terror e o destemor da guerra, eternizando, ao longo da vida, essa sua intrínseca humanidade em cada vertente da sua multifacetada missão como monge, como educador, como homem de desporto e de cultura.
TEMOS HOMEM, PADRE ABEL!
Socorro-me da minha própria percepção pessoal, compartilhada com muitos de vós que me ouvis, assente no convívio próximo e continuado de uma dezena de anos, ainda menino e moço, e na renovação frequente do mesmo abraço de sempre, para traçar alguns apontamentos sobre alguém que, para o que mais nos interessa, atravessou a história gloriosa do Colégio de Lamego, nele deixando gravados, com tintas que o correr do tempo não apaga, o seu espírito e a sua autenticidade.
Lembro-me, e que imagem tão apelativa ainda hoje!, de o ver e ouvir calcorrear os espaços do Colégio, aos fins de tarde, quando regressava, impante na farda camuflada de comando, a marcar o passo duro e ruidoso com umas botas altas pretas, para que olhávamos com um misto de tremura e de fascínio. A mesma tremura e o mesmo fascínio com que eu, por ele e outros educadores, conduzido, trepei, pela primeira vez, um palco para interpretar o “aviador”, na peça baseada no “Princepezinho” de Antoine de Saint-Exupery.
Foi sempre diferente o Padre Abel Matias: marcou, permanentemente, a sua singularidade, reinventando, à revelia do protótipo mítico do monge compungido e contido, sem deixar de o ser, o paradigma de um homem/padre/militar/educador, que conjugou numa só pessoa formas complementares de vida que, na aparência tão afastadas na sua lógica e valores, conformaram um estilo de intervenção social, sob duas divisas que me parecem constituir as traves mestras do seu percurso de vida: “ per aspera ad astra ”, bebida no pensamento do Colégio e “ a sorte protege os audazes ”, colhida no desígnio de padre/comando, aliadas, já agora, a uma outra rebuscada no ex-libris de Aquilo Ribeiro, aluno ele próprio desta prestigiada instituição: “alcança quem não cansa”.
Foi essa forma múltipla e diversificada de ver a vida e agir que o Padre Abel Matias transmitiu à minha geração de estudantes, como a todas as outras que se nos seguiram, por mais de trinta anos, e que tiveram, como eu tive, o privilégio de com ele conviver como professor, como prefeito, como treinador, como educador de todas as horas, como amigo.
Nunca foi de facilidades o Padre Abel. A sua filosofia operativa de vida, em que assentava a sua forma de educar, era a de que o Colégio de Lamego formasse homens, não escondendo em cada contacto com os que aqui passavam e se engrandeciam a vaidade e o orgulho por os saber engrandecidos e medrados como homens de bem e de valor, que cumpriram a máxima, sempre por ele repetida, de que era preciso “pisar forte na vida”, assim como quem bate, confiante e seguro do caminho seguido, a bota preta de comando que, no fundo, nunca deixou de ser.
Os valores que o Padre Abel Matias nos foi transmitindo passaram pela firmeza convicta de carácter, pela coerência do pensamento e da actuação, pela intensidade e seriedade do trabalho e do suor, pela solidariedade e espírito de corpo, pela responsabilidade dos actos, seus efeitos e implicações, pela lealdade que firma a amizade e cimenta os projectos, pela audácia e tenacidade que prenuncia o êxito.
Esta forma de estar na vida, sempre à procura de horizontes de sucesso, sempre suportada na exigência, no esforço levado ao limite, na crença na capacidade do trabalho e do entusiasmo acompanhou-o nas três comissões que cumpriu na África do seu amor, terra de Nossa Senhora de Muxima, que tão bem contou em histórias repletas de vida e sangue, integrado em tropa de elite e não na tropa do “caga e tosse”, como não se cansava de frisar.
Mas acompanhou-o, também, no exercício da sua missão de educador e no gozo da sua devoção como treinador de voleibol, no âmbito da qual tive o prazer de colaborar, na minha pequenez disfarçada de força de vontade, constituindo os êxitos que ajudou a construir, em sucessivas equipas de campeões, fonte de iniludível vaidade, porque sabia que eles assentavam em trabalho sério, planeado e executado ao pormenor.
Não me esqueci, meu caríssimo Padre Abel, de que estou a falar de um monge beneditino, que obedece à regra secular do “ora et labora”. Mas estou a falar de um beneditino que, entre tantos, no mundo dos vivos ou transpostos para a eternidade, nunca negando essa matricial raiz, essa imagem de autenticidade imprimida a um Colégio que se prepara para celebrar 150 anos de existência continuada, deixa um profundo rasto que sempre o lembrará, na sua peculiaridade.
Vem a propósito socorrer-me da sua bondade e humildade, Padre Abel, para me permitir que alie a este momento de homenagem uma palavra específica para cada um dos outros dois homenageados, sobre que outros, com outra propriedade e desenvolvimento, falarão.
Inclino-me em respeito do Padre Policarpo, que me habituei a ver como o símbolo da bondade, bonomia e paternidade, enquanto “prefeito dos pequenos”, assumindo-se como educador cordato, meigo e colaborante. Para si, Padre Policarpo, um abraço forte de amizade e reconhecimento.
Celebro o Padre Valdemar, de quem bebi tanta histórias de vida, publicadas, ao longo de anos, no “Notícias do Douro”, atento aos problemas sociais, designadamente, vividos pelos emigrantes em França, às dinâmicas de vida ligadas ao funcionamento da economia, à pobreza, às condições de sobrevivência e à dignidade da pessoa humana. Um abraço estreito, também para si, Padre Valdemar.
Permita-me, Padre Abel, que prossiga este momento desviado do objectivo específico de a si me referenciar, para homenagear, na sua pessoa, todos aqueles que, com a dádiva do seu saber, cultura e exemplo de vida, têm feito do Colégio de Lamego uma referência na educação nacional, formando homens que, prestigiando-se nos círculos familiares, sociais e profissionais, prestigiam a Casa Mãe que os fez com a indelével marca do “aluno do Colégio de Lamego”.
Mas, voltemo-nos, uma vez mais, para si, Padre Abel Matias, razão essencial de eu estar levantado sobre a minha voz, à procura de impulsos da homenagem merecida e que me cumpre encontrar por entre lembranças soltas dos caminhos cruzados que percorremos.
Não estranhe que não me tenha preocupado em apresentá-lo, no seu currículo académico e profissional, em tom de registo biográfico, escusando-me de o fazer, não pela sua grandeza, relevância e valia, mas pela percepção do ridículo que faria em repetir o que cada um de nós conhece muito bem.
Quero terminar com a manifestação de uma última ideia que é preciso reter: foi sempre inequívoco e manifesto o orgulho que o Padre Abel, com trinta e tantos anos, com quarenta e tantos anos, com sessenta e tantos anos e com setenta anos (sete décadas, meu amigo… e parece que foi ontem!), revelou em se sentir e ser, efectivamente, jovem entre os jovens, mostrando uma capacidade especial de se adaptar às mudanças, com inteligência e sagacidade.
Nessa conformidade, adequando a sua acção educativa às sucessivas gerações, assente em valores fundantes de trabalho, competência, autoridade e disciplina, nunca sendo sentido como corpo estranho no meio da juventude, manteve-se, dia a dia, ele próprio jovem, na contemplação do rio, permanentemente, renovado nas águas que vê passar do alto das sucessivas pontes, que ajudou a construir.
Um apelo, em final de discurso: sendo Lamego a terra de afecto e de emoção do Padre Abel Matias, constituir-se-á num imperativo de justiça que a cidade de Lamego, através das competentes autoridades, saiba honrar-se, honrando esse seu filho do coração, em homenagem que faça jus à sua importância social e à sua figura de homem e educador.
Padre Abel Matias, sei que não tem dúvida do regozijo que sinto por estar, aqui, a demonstrar o apreço, o respeito, a amizade e o reconhecimento que lhe são devidos.
Foi um privilégio ter cruzado os meus passos, calçados de sandálias e sapatilhas, com os seus passos, a ecoarem em batimentos de botas pretas de comando. Todos nós pisámos forte na vida, empurrados, também, pelas mãos, simultaneamente, sensíveis e duras do Padre Abel Matias.
Bem haja, meu amigo de sempre!
Termino, baixando o tom de voz, para vos sussurrar, em jeito de divulgação consentida de um segredo, apontando para o Padre Abel:
- MEUS AMIGOS, TEMOS HOMEM!
José Alberto Marques (ex-aluno)
31 de Maio de 2008